O destino da ironia,
por Afonso Araújo
Quando achamos que não há seres no mundo mais “especiais”, leia-se odiáveis, que os funcionários da EMEL, chega o dia da inspecção do carro. E acreditem, tudo muda.
Hoje, durante a hora e meia que estive à espera para me verem o carro, aliás, o veículo, antes que algum deles ouça, apreciei ao pormenor todos os movimentos, a meu ver claramente trabalhados e delineados, dos inspectores. Desculpem, dos senhores inspectores. É isso.
Comecemos pelo andar. A ginga daqueles seres, todo um caminhar entre o veículo inspeccionado e as máquinas que, dizem eles, não falham, enquanto apontam qualquer coisa, seja ela qual for, no seu mini-tablet avançado. E nós? Caladinhos. E nós? À rasca. E nós? A rezar para que ele não veja aquela treta que só nós sabemos que não está a funcionar muito bem, mas que temos uma confiança cega (onde é que eu já ouvi isto?) que ele não vai topar.
Adiante, o ar emproado, galifão, como se a decisão dependesse deles e não das máquinas. Talvez dependa, mas não quis pensar muito nisso.
Atentem a pose: pescoço bem esticado, cabeça erguida, como quem diz: "Espera lá, deixa-me ver quem é este caramelo. Bom, hoje estou bem-disposto, é sexta-feira, talvez te safes." Mas, enquanto isso, vamos lá ligar as luzes. Bem, nesta altura, falo por mim, parece que me esqueço de tudo: pediu-me para ligar o pisca da esquerda e eu liguei o da direita, pediu-me para ligar o limpa-vidros da frente e eu consegui accionar o esguicho do limpa vidros traseiro e molhá-lo ligeiramente. Tudo bem, ele riu-se. Acho que foi a única vez. Aliás, tenho a certeza. A meio da inspecção, começo a pensar por que não me fizeram rapariga: era tão mais fácil. Uma mini-saia, um batom mais arrojado, um saltinho alto, e o carro apitava de alívio por passar no primeiro segundo. Mas não, nasci rapaz. E ainda por cima, estúpido, fui de calções de banho. Mesmo a pedir que ele me olhasse de lado e pensasse: "Espera lá, eu aqui a trabalhar que nem um camelo e este miúdo vem da praia? Está bem, está. Vamos lá ver se encontramos aqui alguns problemas. Desculpem, irregularidades.
Volante para ali, acelerador para acolá, chegamos ao fim do passeio sob um pavilhão onde não se ouve música. Apenas acelerações, buzinas, máquinas a apitar, entre outros ruídos giros. No fundo, uma junção de sons equivalentes ao produto final de uma música da Ana Malhoa, mas não tão mau. E eu penso: De facto, como é que eles podem ser pessoas mais simpáticas se passam ali grande parte da vida?
“Pode avançar!”, diz-me a placa luminosa. Mas como demorei mais de dois segundos a fazê-lo, tinha o senhor inspector, por debaixo do meu carro, a gritar para que o fizesse. E sem um simples e educado “por favor”. Aí não hesitei.
Entro na sala onde entregam a ficha da inspecção. Do outro lado do vidro, o inspector. Xiça, Senhor inspector. Olha para nós, a primeira e única vez, nos olhos. Nesses segundos, aquele ser sente a força que tem nas mãos, o poder de poder destruir o dia de alguém, nalguns casos acompanhado de um mascar de pastilha quase tão irritante como o do Jesus. Sim, não é o carpinteiro, é o outro. O tempo não passa. E isso dá-lhe gozo. Nós, por esta altura, não respiramos. Ao entregar a folha, antes de a mostrar, faz uma pausa de cinco segundos, equivalente a cinco horas, como se fosse dizer o vencedor do óscar para uma categoria importante.
No pico do desespero: Lá diz o resultado e entrega, no meu caso, desta vez, a folha verde.
Nesse momento, sorri e apeteceu-me insultá-lo. Mas mantive a calma e vim festejar com o meu carro que, por esta altura, acelerava de alegria.
Esta parte é mentira, para os mais inocentes.
Saí de lá contente, mas lembrei-me que tenho que lá voltar daqui a um ano.
Não faz mal. Enquanto isso Portugal já saiu da crise, a Fafá de Belém já emagreceu, o Michael Jackson já lançou o novo disco e o Sócrates já acabou o curso.
Afonso Araújo
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