O fim do jornalismo e o último repórter
Natália Anastasyadi é uma pessoa invulgar. Não gosta que a tratem por Natasha – diz que todas as mulheres russas têm o mesmo nome. É professora de inglês em Kiev. Fala fluentemente russo, ucraniano, chinês, inglês e português. Ainda não chegou aos 25 anos de idade, é o fruto de um amor tardio entre uma muçulmana turca e um comunista grego. De um herdou a religião, do outro a memória e a nostalgia de um desencontro. O pai nasceu em Salónica, mas cedo deixou a terra natal, com toda a família, fugido das tropas nazis, rumo à Rússia da revolução bolchevique. Uma viagem que ficou a meio, no porto de Kiev, onde se perdeu para sempre do resto da família. Sozinho sem documentos, com 18 anos, num país estrangeiro, acabou preso, acusado de espionagem pelo regime de Estaline e enviado para um campo de concentração. Contraíu turbeculose nos longos anos de Gulag. O calvário de Anastasyadi só acabou, num sanatório da Crimeia, no exacto momento em que encontrou o amor nos braços da mãe de Natália. Casaram, tiveram uma filha, uma vida tantas vezes sonhada, até que um acidente de viacção o deixou incapacitado. Morreu quando finalmente atingira um pouco de paz. Deixou a mulher e a filha entregues a uma eterna saudade, uma melancolia, quase culpa. “Não tínhamos dinheiro para os remédios, se fosse hoje tinhamo-lo curado”, diz-nos Natália antes de mergulhar no silêncio húmido das coisas irreversíveis.
A inesquecivel história de Natália mora numa caderno de apontamentos guardado na gaveta das resportagens de um dia futuro. Ao lado de Selmina, a menina orfã, de idade incerta e caminhar recente, que um dia, de braços esticados, olhos negros, grandes, esbarrou na minha perna. Selmina só queria um pouco de colo. Tinha chegado há escassos dias ao Centro Nutriocional de Mecanhelas, no Niassa - uma espécie de cuidados intensivos para crianças e recém-nascidos que padecem de fome naquela região do norte de Moçambique. Como grande parte daquelas crianças, acolhidas por missionários católicos, Selmina pode estar contaminada com o virus da SIDA, mas ali não há meios de diagnóstico. Selmina está só, doente e com fome. Esquecer aquele olhar triste pousado repousado no meu ombro é impossível, virar costas ao drama dos orfãos da SIDA é um crime.
A Selmina e a Natália têm histórias diferentes. Ambas davam um filme, ambas merecem uma reportagem. Habitam essa zona de contacto entre o jornalismo e a literatura. Podem ser personagens do futuro do jornalismo – essa, digamos, actividade com fim anunciado a golpes do sensacionalismo economicista, do jornalismo do cidadão ou do subjectivismo preguiçoso.
Para que não sucumba à inutilidade e à vacuidade, o jornalismo (e os jornalistas) tem de encontrar respostas. Num cenário ética e economicamente agressivo e concentracionário, a grande reportagem é um caminho e uma resposta, ao contrário da informação paroquial, sem mundo, nem ideias, que se pratica um pouco por todo o lado. Em novos suportes - livros, ciber-livros, blogues, etc – mas também nos suportes tradicionais, inseridos na orgânica da empresas de comunicação social, a grande reportagem recupera devagar o lugar que se julgava perdido. E, apesar do panorama editorial suicidário, em Portugal há sinais encorajadores. As televisões generalistas, por exemplo, recuperaram a emissão de conteúdos e programas de grande reportagem em horário nobre e, imagine-se, os produtos são rentáveis quer ao nivel das audiências – batendo records de audiência, liderando ranking diários de rating e de share – quer ao nivel de vendas para o estrangeiro, quer ainda de patracíonios publicitários, por forma a atrair líderes de opinião, classes com maior poder de compra, públicos urbanos, no que tecnicamente se pode designar por classes A e B. Mais um mito que morreu de velho: reportagem e controlo de custos não são excludentes, um em relação ao outro.
É verdade que estamos longe da realidade de países desenvolvidos que promovem uma indústria da grande reportagem e do documentário, que estimulam o jornalismo de investigação. É certo que a grande reportagem ainda sofre o estigma dos produtos de luxo. Mas isso aumenta a amplitude da nossa tarefa enquanto jornalistas e repórteres. Temos, todos e cada um de nós, a responsabilidade de lutar pelas Natálias e pelas Selminas deste mundo. Até ao fim.
nota: texto publicado em "Jornalismo e Jornalistas" de Julho/Setembro 2007